A (breve) vida periodística de Augusto Prol

Por Gustavo Rubim

Rua Major Gote (Cine Tupan) - Patos de Minas, MG/Autor Desconhecido

“O jornalismo moderno tem uma coisa a seu favor. Ao nos oferecer a opinião dos deseducados, ele mantém-nos em dia com a ignorância da comunidade”.
— Oscar Wilde

A cidade fede; Augusto Prol, esparramado na poltrona da redação, travestido de um semblante malcontente, diante da máquina, teclava forte… tac, tac, tic, tic!, para redigir o obituário de um velho professor, que, por algum acaso, decidiu findar sua antiga existência na calçada trepidante da rua Major Gote, suja e com ladrilhos negros em forma de folhas de milho, a mesma em que dormem os mendigos o sono tranquilo da tarde — ignorados aos olhos dos transeuntes, tal qual o corpo do velho professor; tão inerte quanto, tão inexistente quanto. Prol cheirava as vestes puídas; uma desgastada camiseta verde de botões espaçados, um jeans lavado que repetira toda a semana e os sapatos de solas gastas que faziam-lhe bolhas nos calcanhares… porém, o fedor penetrava-lhe às narinas largas e tudo a sua volta parecia em estado de decomposição — não distinguia de que parte vinha o odor fétido. Tapou o rosto pálido, nem jovem nem velho, com o pano com que higienizava a lente dos óculos — sempre embaçadas. Limpas apenas quando Prol já não distinguia os caracteres que redigia velozmente. Franziu a testa, acentuando as duas linhas tortuosas que atravessavam-lhe o rosto. Nesse instante, notou, por uma faixa de céu, que os olhos semicerrados alcançavam pela janela, que o sol morria brandamente no horizonte. Era quase noite; estava só na redação. Se esqueceu do texto, recordou que esse horário, costumeiramente, causava-lhe enorme angústia; como se todas as tristezas de sua existência particular se reunissem n’alma sempre àquela hora marcada para atormentá-lo. Não sabia bem explicar que tipo de fenômeno era esse, dizia apenas que era um sopro na bexiga, como se uma boca pequenina a bafejasse, pressionando a ponta com os lábios frios, da mesma forma que crianças fazem com balões em praças públicas em dia de domingo. Quanto maior o sopro, maior o adiantar das horas. Algo inflava dentro de si e pressionava-lhe os órgãos; arquejava-se na poltrona buscando o ar e tudo que tragava era a podridão da cidade. Apenas quando o crepúsculo era completo, voltava a si. Não sem um amargo na garganta e um ódio pela humanidade, mais pelos indivíduos que a compunham que pela humanidade; é verdade!.

A cidade de Patos de Minas divide-se em duas partes: a cidade que nasce na parte alta, em agrupamentos de bairros populares ou condomínios em que descansa a classe média; e a parte envelhecida, que rói em alugueis caros e o fedor do fim do dia. A podridão espalha-se pelas ruas centrais, como se o vento, quase imóvel, arrastasse consigo cadáveres de animais. No entanto, o odor fétido é perceptível apenas para as narinas estrangeiras. Os concidadãos não se dão conta da podridão em que vivem, acostumando-se ao fedor infernal passivelmente, enquanto seus corpos estão mergulhados na merda até a altura do pescoço. Como o cozinheiro, ao se habituar ao cheiro da comida, já não se alimenta para matar a fome senão pelo ato mecânico de comer; sem distinguir os sabores que ingere em fartas colheradas — fosse aquilo tudo do mesmo. Era esse odor familiar e decomposto que chegava até as vias nasais do sereno jornalista, depois filtrado em profundas golfadas de inspiração. Prol era um sujeito fraco tanto de espírito quanto fisicamente. De espírito; no sentido de que se ofendia-se com as mínimas quinquilharias. Qualquer palavra atravessada ou mal dita, era capaz de atormentá-lo por dias ou até meses. Pedia perdão por qualquer bobagem e cuidava minuciosamente para não haver mal entendidos. Sofria com essa obsessão em não cometer erros ou pelos menos grandes erros. A verdade é que escrevia como uma máquina, ainda que dessem-no por tonto. A mente livre era capaz de fabricar grandes pensamentos. Fora prejudicado por se debruçar demais sobre a teoria, que acabou por embrutecer su’alma, tornando-o um fio condutor da notícia, sem depositar o caráter humano ao texto. Obedecia fielmente o mantra mentiroso da imparcialidade jornalística. Apenas quando regressou à literatura, algo de novo acendeu-se dentro do coração largo do velho-rapaz, tocado quem sabe por algum mestre francês, talvez Balzac, Victor Hugo?

Defronte a Rodoviária Velha, espremido entre dois edifícios, na rua Padre Caldeira, Augusto Prol habitava uma empobrecida garçonnière, no terceiro andar de um antigo prédio, de afiações expostas e quase sem cor; a pintura desprendia-se do concreto como cascas de mexerica madura. Tudo naquele lugar sofria o abalo do tempo e possuía a aparência decadente das horas; inclusive os inquilinos. A rua Padre Caldeira, para que os poucos leitores se situem, trata-se de um gancho de uma forquilha. Para ser mais específico, o formado do peito do frango depois de comido por dentes famintos, que depois secamos ao sol e vira disputa entre as criança após um almoço farto em família; as pequenas mãos agarram-se a seus lados, até o “tac” que decidirá o vencedor para qual o osso manteve-se intacto. Os transeuntes que caminham pela rua General Osório, após um prazeroso passeio pela praça Getúlio Vargas, a admirar os canteiros floridos da primavera ou a grama pálida do verão, ou em retorno à missa das 10h, da catedral Santo Antônio de Pádua, eternamente em reforma pelo bon’Deus e a contribuição dos fiéis; se separam nesta forquilha, entre os que seguem sentido à agência dos Correios, e viram, levemente, à direita e permanecem na General Osório; e os que vão destino ao Mercado Municipal e viram à esquerda, já na buliçosa Padre Caldeira, com seus ônibus abarrotados de gente, de tempo em tempo, como que se por ali passasse toda a Cidade em comboio. A garçonnière, esse pequeno cômodo particular destinado a existência de Augusto Prol, era composto por uma mobília modesta; uma pequena cama sem cabeceira coberta por lençóis sempre limpos, um fogão quatro bocas, uma pequeno refrigerador, uma escrivaninha e uma cadeira de acento gasto; os quatros ternos de seu vestuário, estendiam-se em uma pequena arara de roupas. Os livros de Prol eram armazenados em caixas de papelão e as leituras atuais, numa pequena pilha ao lado da cama, que deixavam os volumes ao alcance das mãos. Neste pequeno cômodo, abafado pela ausência de janelas, Prol devorava os grandes calhamaços resistente a ideia de imitar os autores agarrando a caneta de tinta preta para compor pequenas estórias. Dedicava todas as horas que lhe restavam à literatura, fazendo dela sua própria vida [real], já que passava mais tempo dentro destes volumes que em uma realidade cotidiana. Julgava-se, depois de sair de seu pequeno quarto, de aluguel pago sempre em atraso; de onde lia, sob meia-luz a mais alta literatura, indo de Guimarães a Eça de Queiroz… sem deixar de passar por Proust, assim… julgava-se o mais desprezível dos seres pela crueza do que redigia diante da máquina naquele canto da redação. Fazia o trabalho da forma mais maquinal possível, ao sair da redação buscava a abstração das palavras escritas, como se pudesse apagá-las com a borracha do esquecimento. Evitar que as desgraças escritas não o assombrassem durante a noite; o repetido pesadelo de estar sendo perseguido por alguém ou reprises de assassinatos cruéis que contava diariamente nos textos jornalísticos.

Nada sabia ao certo, Augusto Prol apoiava a palma da mão, sustentada pelo cotovelo à mesa [que o incomodava pela agudeza de seus ossos pontudos], o rosto pálido de quem tem sono; as pálpebras pesavam-lhe como um para-brisa que desce vagaroso em meio a tempestade. A ameaça de um sono profundo tirava-lhe a compreensão do texto difícil, no entanto, esforçava-se para atravessar o período pedregoso. A leitura era como caminhar descalços por uma estrada de brita. A complexidade não o desanimava, ao contrário, o rapaz sentia-se mais excitado, agarrando às pressas as palavras que lhe escapavam e dando nota em um pequeno caderno sem pauta de capa preta. Escrevia com uma letra trêmula e febril, como a caligrafia de um enfermo. Depois, com um pequeno dicionário, guardado em uma das gavetas da escrivaninha, decodificava as palavras desconhecidas e relia novamente o trecho em busca do significado total da frase; quando era um livro em francês, como o dificílimo Le Père Goriot, o trabalho de tradução era ainda mais árduo, já em espanhol, permitia que uma ou outra palavra lhe escapasse, sem que o termo prejudicasse o entendimento da obra. Assim adormecia essa jovem alma noite traz noite.

No quarto abafado, sentia-se parte daquele mofo a por umidade nas paredes; decorara os hábitos da velha que o alquilava a habitação e evitava-a a todo custo. Primeiro pela vergonha ao pagá-la odinariamente em atraso, depois por carregar certo rancor pela velha que imaginava espiá-lo. Quando já avançava o dia do pagamento, a velha buscava-o pelas escadas. Para evitar as batidas na porta, apagava as luzes ao chegar da redação e lia à luz de velas. O que também poupava-lhe na conta de energia, porém prejudicava-lhe as vistas. Dormia sempre mal; a ausência de janelas e varanda para respirar… davam-lhe a impressão de viver numa jaula, a sensação de um animal urbano. Os pesadelos eram constantes, intermináveis; quem o visse dormindo, poderia reparar-lhe a face contraída, o traçado das duas linhas tortuosas que atravessavam-lhe a testa. Por vezes, soltava gemidos de agonia. Despertava ainda mais cansado do que quando se acostou— — molhado de suor. Um dos que lhe atormentavam, era sempre a ideia fixa de perseguição, como se estivesse dentro de uma das cenas de crimes que escrevia diariamente. Outro, o de um gravíssimo e imperdoável erro gramatical em uma das manchetes, que apenas ao tardar da hora, quando todos já comentavam-no, fora corrigido. O café era apenas um líquido preto e amargo que adoçava com duas pequenas colheres de açúcar; quando havia pão, comia-o puro. As primeiras horas do dia eram suas preferidas; despertava às 5h e tomava um banho quente, deixando a água escorrer pelo corpo nu enquanto sua cabeça fabricava as mais belas filosofias. Era o único instante do dia que não sofria de nenhuma moléstia.

Prol, dizia, e quantas vezes disse!, naquela mesma mesa de onde noticiava a pequena sociedade, que erraram os antepassados jornalistas, ao optarem pelo papel mais barato jornal, nem esse papel acinzentado era digno de receber a merda que escreviam esses “celebres” homens, “deviam mesmo imprimir essas porcarias que fazemos hoje, em papel higiênico ou mesmo em guardanapo. É descartável, é mais digno!”. Com esse pensamento, sem companhia para pronunciá-lo, Prol sempre ecoava dentro de si essas palavras antes de riscar o papel com a ponta da caneta.

Com a pasta pesada no ombro direito, que davam-lhe o aspecto da Torre de Pisa vagueava até a redação, e por destino ruidoso caiam-lhe sempre os primeiros pingos de chuva ao sair do ninho. Devia se apressar, na Major Gote poderia se proteger embaixo das marquises. Vestia, honradamente, a capa preta que sempre o acompanhava, nela se sentia o próprio O Capote, de Nikolai Gogol. Sempre preocupado em proteger a pasta mais que a si mesmo, os pingos eram cada vez mais grossos, até se tornarem um chuva constante. Lá vai Prol, molhado de desesperança!

Da sacada; agora, admirava o trânsito lento dos carros; a noite era completa. As luzes do semáforo o entretinham como as luzes de um carrossel que deslumbra crianças que choram e imploram à mãe um ingresso para girarem eternamente em animais fictícios. Esperava ansiosamente o câmbio de cor, enquanto, preso a grade, acendia um cigarro… Fumava mais por hábito do movimento de levar e tirar o fumo da boca que por gosto. A fumaça causava-lhe um gosto estranho na garganta e nunca terminava o tabaco. Gostava de vê-lo ser consumido, sozinho, enquanto a fumaça baila no ar até desaparecer ao longe. Nesse instante pensava em Tchekhov.

“Nada une tão fortemente como o ódio — nem o amor, nem a amizade, nem a admiração”.

Observava como aqueles seres, que habitavam a redação, uniam-se uns aos outros pelo ódio entre si. Ao momento em que despejavam amargamente o rancor pelo semelhante e pronunciavam as mais horrendas declarações sobre o seu caráter. No instante seguinte, diante do companheiro recém-chegado, eram capazes de beijar-lhe a face como um Judas e tecer os mais sinceros elogios e se comoverem ao balbuciarem palavras carregadas de ternura. Ademais do ódio, uniam-se também pela vaidade. Prol tinha profundo interesse pela etimologia dessa palavra e julgava os freudianos por convertê-la em “narcisismo”; um termo abstrato e que descaracteriza o real sentido desse mal que adentra as redações e os corações humanos. Para ele, a vaidade é a principal e única responsável pela desgraça humana. Sem ela, os seres viveriam em completa harmonia e fraternidade, não haveria nem fome nem ranger de dentes. O sol nasceria para todos, em uma larga manhã de domingo, em que todos, sentados à mesa do café, comeriam o pão doce distribuído pela mão materna, em pedaços iguais, uns aos outros. Quando em dúvida ao tamanho, passava-se ao companheiro ao lado sempre o pedaço maior e comeriam agradecidos o pedaço menor. A podridão também vinha daquela gente, há dias em que a simples presença de certas pessoas causava-lhe náuseas; enjoo, ânsia de vômito. Nunca pensou que pudesse sentir tanto desprezo pela raça a qual pertencia. Por muito tempo repudiou seus próprios sentimentos, porém, depois de certo tempo, julgou-se maleável diante do que seus olhos presenciavam estupefatos. Mais ou menos estupefatos, quer dizer, com o dia a dia na redação, o impacto dos acontecimentos em seu ser, diminuíram. “Arre!”, exclamava dentro de si e penetrava-lhe a sensação de viver em um ninho de abutres. Abanava as mãos, certas vezes, por imaginar que a qualquer momento uma mosca podia entrar-lhe pela boca. “Homicídio no N. Sra. das Graças, dois mortos a tiros e três feridos”, quanto maior a desgraça, maior o gozo jornalístico. Vão os abutres!, em marcha fúnebre. Prol era um desses, ele também batia as asas envergonhado. Porém, assim como não se pode julgar o jornalista por toda estupidez e desinformação social, também não pode-se culpá-lo por dar na boca o sangue que empolga o leitor e vende o jornal. Paulo diz:

“Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor”.

— 1 Coríntios 13:13”

Esse trecho, por um segundo, iluminou a consciência Prol, que busca em qualquer recordação profunda abraçar estas palavras e abandonar de vez Tchekhov, o russo magnífico. Num desses dias em que a redação reina em silêncio e que nada parece acontecer no mundo, como se o apocalipse passasse sob a Terra e apenas a redação não soubera para noticiar… Prol, por algum acaso, temendo que a supervisão ou o próprio editor-chefe chamassem-no a atenção, “não publicastes nada, verme infeliz?!”, pensou, intimamente e com certo tom cômico para coisa, como seria engraçado e curioso, esse ser à procura pela notícia, ao nada encontrar com tais critérios de noticiabilidade, redigisse esgotado a notícia da própria morte e após o ponto final e assinar a matéria, saltasse pela janela em tal dia, tal hora, sob tais circunstâncias… Esse pensamento atravessou-lhe o espírito e morreu em uma gargalhada sinistra que chacoalhava seu corpo magro e rangia a cadeira dentro do silêncio penetrante do qual escrevi as frias palavras diárias. Nesse instante, a alma de Prol fora consumida por um estado febril, enquanto atirava pequenas bolas de papel, amassadas pelas mãos suadas, à lixeira no canto da sala, com a intenção de decidir ali o próprio destino, “se cai… se não cai…”. Passado algum tempo, as mesmas mãos trêmulas e suadas fê-lo ranger o teclado.

“Na noite de xx, por volta das xx, o jornalista Augusto Prol, xx anos, residente na rua Padre Caldeira, […] tac, tac, tic, tic…”

FIM

Gustavo Rubim, 24 anos, brasileiro, jornalista pelo Centro Universitário de Patos de Minas, Unipam - Brasil. Mestrando em Integração Latino-americana pela Universidade Nacional de La Plata, UNLP - Argentina.

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