O Carrilhão do Marcolino

Por Jô Drumond


Não sei quando nem por que surgiu em minha vida o diletantismo pela estética e pelo som dos carrilhões*, mas lembro-me perfeitamente do dia em que deparei com o primeiro deles. Foi no segundo ano primário, quando me foi solicitado pela professora Sílvia Dalariva Nascentes, que verificasse as horas no salão nobre do Grupo Escolar, atual Escola Estadual Marcolino de Barros, imponente construção eclética situada na Avenida Getúlio Vargas, em Patos de Minas. Era o único relógio existente no estabelecimento. Na década de 50, ainda não se usava relógio ne pulso, mas era um adereço indispensável nas algibeiras dos elegantes mancebos. Eu já havia aprendido a ler as horas em relógios desenhados a giz, no quadro negro. Porém, nunca havia visto um carrilhão de verdade.

Ao deparar com o imponente maquinismo, preso à parede, percebi que o quadrante era diferente dos demais. No lugar dos números havia algo ininteligível. (Soube mais tarde que aquele código de gente grande se chamava “algarismos romanos”). Fiquei estática, sem saber o que fazer. Voltar para a sala de aula sem a devida informação seria grande demonstração de ignorância. Aguardei algum tempo, até que um “salvador da pátria” me socorresse.

Décadas mais tarde, ao ler o romance Ópera dos mortos, de um escritor nascido em Patos de Minas, Autran Dourado*, criei em minha mente a lúgubre imagem de um casarão antigo com um salão repleto de carrilhões. Pouco me lembro do conteúdo do livro, mas a imagem criada nunca se esvaeceu. A protagonista, última descendente de sua linhagem, vivia sozinha num sobrado. Cada relógio de sua sala de visitas teria sido parado no memento mori de um de seus ancestrais. Apenas um deles funcionava e, para manter a tradição, deveria ser parado no exato momento de seu falecimento.

Creio que tanto a leitura do livro quanto as visitas aos museus europeus de relógios antigos despertaram em mim a predileção pelos pêndulos. Devo assinalar que esse diletantismo não se liga à sinistra simbologia do relógio como “olho do tempo”, signo da fugacidade da vida e da proximidade da morte, mas à estética dos mesmos. Quanto mais curvas, contracurvas, volutas e arabescos, e quanto mais belo e duradouro o som da badalada, tanto melhor.

Meio século após ter visto o primeiro pêndulo de minha vida voltei a Patos de Minas, e, cheia de saudosismo, fui ao Marcolino, para outra mirada no belo carrilhão. Sabia exatamente onde encontrá-lo; à esquerda, logo na estrada do salão nobre, local onde funcionava provisoriamente a biblioteca. Deparei com a parede nua. Procurei-o nas paredes mais próximas, em vão. Talvez o tivessem mudado de local. Dirigi-me à direção da escola para obter informações. Desapontada, descobri que ninguém tinha nada a declarar. A administração da época não sabia nem mesmo que algum dia teria havido um objeto desses no estabelecimento.

Quando estudei no Centro de Linguística aplicada, da Universidade de Franche Comté*, descobri que ali havia um museu de relógios antigos, chamado Museu do Tempo (Le Musée du Temps) no qual se encontra o primeiro relógio fabricado no mundo.

Meu passatempo preferido naquela cidade tornou-se a mirada cotidiana dos antigos mecanismos do Museu do Tempo, datado do final do século XIV. A exposição dos relógios respeita a ordem cronológica, do século VI ao início do século XX.

Além da beleza das peças, faz-se mister observar o requinte arquitetural do Palácio Granvelle* (séc. XV), que abriga tal museu, desde 2002. Trata-se de uma verdadeira joia arquitetônica renascentista, em três níveis, com imponente fachada de influência italiana e flamenga, e com telhado salpicado de lucarnas góticas.


Palais Granvelle (Besançon – France)


Posteriormente, durante uma temporada em Viena (Áustria), tive a oportunidade de visitar outro museu do relógio. Apesar da proibição do uso de máquinas fotográficas no local, pude fotografar alguns deles, com a complacência dos vigilantes. Além de fazer “vistas grossas”, um deles teve a ousadia de se oferecer para me fotografar ao lado de alguns relógios, contrariando o regulamento da casa. Deve ter percebido o quanto meus olhos brilhavam de emoção diante de cada carrilhão.

Creio que tanto a leitura de Ópera dos mortos quanto as visitas aos museus despertaram em mim o diletantismo “carrilhoneiro”. Lembro-me nitidamente do primeiro deles, o carrilhão que marcou minha infância, e me pergunto: por onde andará o carrilhão do Marcolino?

Notas de rodapé:

* AUTRAN DOURADO: Escritor patense de renome internacional, nascido em 18/01/1926, em Patos de minas (MG), autor de quase 30 obras entre elas
(1964), livro incluído na Coleção de Obras Representativas da Literatura Universal da Unesco.

* CARRILHÃO: sabe-se que o relógio mecânico foi inventado na China, no século IX, mas carrilhões começaram a marcar presença nas salas europeias no século XIV, no período barroco, época em que a temática da efemeridade da vida, tornou-se recorrente. Encontram-se ainda, na Europa, relógios antigos contendo uma caveira dentro do maquinismo, justamente para que se atente para a transitoriedade dos viventes.

* UNIVERSIDADE DE FRANCHE COMTÉ*, situada em uma cidade medieval chamada Besançon (França), cuja origem remonta à Antiguidade, desde antes da era cristã.

* O PALÁCIO GRANVELLE foi construído no século XV por Nicolas Perrenot de Granvelle, primeiro conselheiro e homem de confiança de Carlos Quinto. Foi tombado como patrimônio histórico em 1842. Obs.: algumas aulas do curso do qual eu participava, na Universidade de Franche-Comté, eram ministradas dentro desse monumento histórico.


Jô Drumond é escritora, tradutora juramentada e artista plástica. Já publicou 26 livros. Pertence a três academias de Letras: Afemil, AEL e Afesl. É colaboradora do Jornal de Patos, da Revista cultural Desleituras e publica no próprio blog.

🦆

Apoie o jornalismo independente colaborando com doações mensais de a partir de R$5 no nosso financiamento coletivo do Catarse: http://catarse.me/jornaldepatos. Considere também doar qualquer quantia pelo PIX com a chave jornaldepatoscontato@gmail.com.

Postar um comentário

2 Comentários

Obrigado por comentar!