Imagem: Clube do Arrais |
Turvas as águas que faziam valsar a canoa. Turvas como tudo que é incerto, turvas como são as curvas mais agudas na estrada que é a vida. Estas curvas decisivas, ou que se vem bem o futuro, ou morto ele, num acidente escuro, porque ela, a vida, é bela e frágil e quebradiça como uma taça de cristal. Pegara a canoa enquanto o pai sonhava o álcool que lhe adormecera. Não sabia bem nadar, mas queria enfrentar, em algum espectro de auto-afirmação perante ela, a vida, o medo que sempre nos impede de avançar. E agora, agora, rodava nas correntezas do destino, e, abaixo, as águas turvas a dizer: “o que será, menino”?
As águas arrancaram-lhe o remo, a fé, e a certezas que briavam tão forte naquela decisão de adentrar ao incerto. Descia, rápida, a canoa velha de madeira e havia uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho havia uma pedra. Essa pedra que desafiava o rio e as águas que a agrediam, forte, para fazê-la desaparecer. Exercício de séculos, mas o rio, ele é paciente, mas não gentil.
O pequeno barco lambeu sua borda no lodo que vestia a pedra e os olhos do menino foram turvando a visão na medida que seu corpo descia estranhamente leve na gravidade relativizada que as águas possuem. Havia, dentro dele, um duelo, do instinto de sobrevivência e uma querência de permanecer ali, na suave nave hídrica que o conduzia... afinal, sempre teve orgulho de nunca ter se esquivado de suas culpas. O Horror e a Calma se abraçando, amizade estranha antes não vista por qualquer especialista ou mente humana.
Desceu, desceu, desceu... o rio não parecia tão profundo e foi quase como que chegasse em outro mundo. Calculou o ar ainda nos pulmões e pensou consigo: “Agora sou parte do rio”. E eis, que de súbito, começaram a aparecer, eles, animais que, por direito, chamavam o rio de casa, antes mesmo do nascimento do menino. Uma idosa tartaruga, um jacaré, peixes e muitos peixes, um sapo e ariranhas, sentando todos em volta do menino que assistia, agora sim, com assombro: devaneios fúnebres?
Era uma assembleia. Estavam eles ali, em uma espécie de julgamento, aqueles que iriam decidir sua ventura. Foi colocado em uma cadeira moldada de barro e árvores tombadas nas águas, e, no silêncio que cabia nesse momento, ouviu, sim, ouviu! a abertura dos debates pela velha tartaruga:
- Eis o Homem! Que não pertence a estas águas e veio a este mundo com proposito que desconhecemos ou não entendemos, este mundo estará pronto para ele? Devemos soltá-lo, como é tradição na Piracema ou destiná-lo a aqui à crucificação das águas pelo ato incauto?
Burburinho. Vozes sobrepostas tornando tudo incompreensível até que a massa maciça das ariranhas bradava em uníssono o coro dos sedentos de sangue e justiça aquática, imperfeita, como também são os tribunais da terra firme:
- Que sua carne seja alimento para os bichos! Porque desceu a este mundo que não lhe pertencia?
As piranhas nadavam vociferando aplausos, outros, mais sensíveis, compadeciam do filhote de homem, porque sabiam que a juventude, é mais ousada que sábia, é mais impulsiva que prudente, entre eles, o grande Jacaré que assumiu a toga de um Procurador não eleito, mas necessário para que uma mínima justiça fosse feita:
- Estamos aqui, todos, porque o menino se deu ao rio. Escutamos todos o seu pensamento: “agora sou parte do rio”. Foi ele que convocou essa assembleia sem que soubesse, sem compreender ou mesmo entender as leis que aqui regem os destinos. À ânsia de sangue devemos preceder os justos costumes, sob pena de nos igualarmos aos animais mais baixos que conhecemos: os homens.
O discurso casou impacto, percebendo-se um leve balançar da cabeça da Tartaruga que, presume-se, fosse a Juíza da causa. Mas as ariranhas e piranhas faziam seu jogo político, tentando dissuadir os presentes, criando um clamor popular nascente, ao cochicharem em cada ouvido: - Um homem a mais na terra, um prejuízo para o rio, porque são eles que o destroem.
A turba serpenteava a fala pelo pedido de martírio do menino pelas águas. Alguns outros juntaram-se ao Jacaré e tentavam sobrepô-la dizendo que talvez fosse o contrário, que o menino se tornasse um defensor do rio, favorecendo a todos. A Tartaruga então levantou o que era um cajado ou um uma bengala, todos calaram. Haveria uma sentença.
- Entre todos os erros, há aqueles não intentados, os inconsequentes, e, embora erro, é prudente que seja medido pela régua da clemência. Não há registro que o filhote de homem tenha agredido esse rio e os seus, bem como se entregou a ele. Agora, a cruz da piedade deve ser suportada, principalmente, por aqueles que através da couraça dura que ostentam, possam fazer cumprir seus propósitos. Se queres salvar a criança, Jacaré, estaria disposto a levá-lo até a superfície?
Um aceno de cabeça.
- Assim será feito.
O inconformismo não ditava as regras ali. A assembleia, milenar, era soberana. Saíram calados todos, embora alguns inconformados, porque nunca se agrada a todos. O Jacaré fez uma reverência à Tartaruga e levou um menino estupefato, não só por estar vivo debaixo das águas turvas, mas, principalmente, pelo presenciado. Subiram devagar. O Jacaré acomodou o filhote de homem em uma coivara forte o bastante para não ceder à correnteza e depois parou há um metro do menino para olhá-lo. Um tiro se ouviu.
O pai da criança percorria o leito do rio em profunda agonia e deparou-se com essa cena: um jacaré há um metro do filho sobre um tronco de árvore próxima à margem do rio. A precisão da carabina atingiu exatamente entre os olhos do bicho e logo espalhou o sangue pelas águas, agora rubras, enquanto seu corpulento vulto afundava inerte.
As piranhas e ariranhas tiveram seu banquete em estranha justiça.
A tartaruga questionou seu ofício.
A Bondade nem sempre encontra agradecimentos.
As coisas podem não ser como as vemos.
Nesse Jogo de Culpas, a quem cabe a absolvição ou o martírio? O Pai que se embebedou e não viu o filho entrar na canoa? O Filho pela irresponsabilidade do ato? A Tartaruga que concedeu o indulto? O Jacaré que não tinha a obrigação da advocacia por um desconhecido? O Pai que presencia uma cena sem compreendê-la?
Nesse jogo de Culpas, caminham os seres, entre acertos e falhas, coisas de almas. E como nos é difícil o peso e as medidas! As águas são turvas como os olhos dos bichos e dos homens e dos crivos. E a pergunta que nos resta: Qual a régua de Deus?
Thiago Arantes é um poeta fajutinho, contista e compositor de rocks rurais.
🦆
Apoie o jornalismo independente colaborando com doações mensais de a partir de R$5 no nosso financiamento coletivo do Catarse: http://catarse.me/jornaldepatos. Considere também doar qualquer quantia pelo PIX com a chave jornaldepatoscontato@gmail.com.
0 Comentários
Obrigado por comentar!