Por Caio Machado
Reprodução: Instagram |
Em meados de 2017, tive o desprazer de conhecer a música "Só Surubinha de Leve", do MC Diguinho. A letra, resumidamente, incita que o interlocutor irá embebedar mulheres, estuprá-las e, em seguida, abandoná-las na rua. Por mais absurdo que isso possa soar, temas semelhantes parecem cada vez mais corriqueiros em faixas de funk e trap, que ocupam massivamente as paradas de sucesso brasileiras.
Atualmente, sete das dez músicas que figuram no top 10 brasileiro do Spotify são de artistas de funk e trap. A maioria delas trata de sexo explícito, consumo de drogas e, em alguns casos, faz apologia ao uso de armas de fogo. As outras três da lista incluem um piseiro sobre término de relacionamento, um arrocha que enaltece apostas em bets e prostituição, e, por fim, uma versão de "Corazón Partío", de Alejandro Sanz, gravada pelo grupo de pagode Menos é Mais, que troca o tema do abandono pelo da traição.
No geral, a temática predominante das músicas mais populares no Spotify, seja funk, trap, sertanejo, pagode ou arrocha, objetifica sexualmente as mulheres, retratando-as como "vagabundas" ou algo semelhante. A misoginia não é exclusividade do trap ou funk, mas definitivamente é mais explícita nesses estilos. Por essas e outras razões, a vereadora paulista Amanda Vettorazzo (União Brasil) decidiu protocolar um projeto de lei que ficou popularmente conhecido como "Anti-Oruam".
As mais ouvidas do Brasil no Spotify em 19 de fevereiro de 2025 |
A proposta do PL 26/2025 é proibir a prefeitura de São Paulo de contratar shows para o público infantojuvenil de artistas que façam apologia ao crime organizado e ao uso de drogas, sob pena de multa equivalente a 100% do valor contratado, que seria redirecionado à rede de ensino municipal. O projeto recebe o nome de "Anti-Oruam" em referência ao rapper carioca homônimo, que durante apresentação no festival Lollapalooza de 2024, manifestou apoio à soltura de seu pai, o traficante Marcinho VP, um dos líderes do Comando Vermelho.
Olhando a proposta de lei superficialmente, é possível concordar que a proibição, apesar de parecer travestir-se de censora e ferir os preceitos de liberdade de expressão propagados por políticos de direita (que, ironicamente, estão reproduzindo esse PL massivamente pelo país, incluindo em Patos de Minas — ainda chegaremos lá), parece necessária devido à grande quantidade de músicas de sucesso que, de fato, fazem apologia ao crime e ao consumo de drogas. Entretanto, o buraco é mais embaixo.
Por meio do samba, o pernambucano Bezerra da Silva (um dos artistas cruciais para a compreensão da formação do país), construiu sua carreira com músicas que retratavam a realidade periférica do país, incluindo faixas com claras alusões ao consumo de drogas e ao uso de armas, como "Bicho Feroz" e "Malandragem Dá Um Tempo". Anos depois, os Racionais MC's e toda uma geração de grupos de rap que vieram em paralelo e em sequência construíram um trabalho seminal e antropológico sobre a vida nas favelas brasileiras e a luta antirracista, através de letras recheadas de relatos do sofrimento provocado pela violência e uso de drogas.
Interpretada de forma rasa, a lei "Anti-Oruam", que supostamente mira em artistas que utilizam a música para difundir um cotidiano permeado de drogas e armamentos, poderia não fazer distinção e afetar décadas de construção cultural e socioeconômica promovida por clássicos do samba, rap e, por que não, do funk carioca. Um exemplo disso é a música "Eu Só Quero É Ser Feliz", da dupla Cidinho e Doca:
“Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer / Com tanta violência eu sinto medo de viver / Pois moro na favela e sou muito desrespeitado / A tristeza e alegria aqui caminham lado a lado / Eu faço uma oração para uma santa protetora / Mas sou interrompido à tiros de metralhadora / Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela / O pobre é humilhado, esculachado na favela / Já não aguento mais essa onda de violência / Só peço a autoridade um pouco mais de competência”
Trazendo o assunto para Patos de Minas, dois projetos de lei de teor similar foram protocolados simultaneamente para votação na Câmara Municipal: o PL 6.113/2025, do vereador Sargento Leomar (PRD), que proíbe a contratação de shows, artistas e eventos abertos ao público infantojuvenil que, no decorrer da apresentação, expressem apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas (texto que basicamente reproduz ipsis litteris o texto de Amanda Vettorazzo). E o PL 6.111/2025, de autoria de José Luiz Borges Júnior (Podemos), que "dispõe sobre a proibição de execução de músicas com letras que façam apologia ao crime, ao uso de drogas, à pornografia e que utilizem linguajar obsceno nas escolas da rede pública municipal de ensino e em eventos realizados ou autorizados pelo Município".
Trecho do PL 6.111/2025 |
Vale salientar que, embora siga a mesma lógica da Lei Anti-Oruam, o vereador Zé Luiz ampliou a proibição para escolas, matinês de carnaval, atividades de recreação e veículos popularmente conhecidos como "Carreta Furacão", além de incluir temas como pornografia, tabaco e automutilação. No entanto, chama a atenção o fato de um projeto de autoria de uma vereadora mulher não ter abordado um tema tão relevante e amplamente presente nas músicas, como a misoginia, mesmo quando reproduzido por outros políticos.
Considerando a possível aprovação de um destes projetos de lei em Patos de Minas, é possível imaginar que a mesma brecha que colocaria artistas como Bezerra da Silva e Mano Brown no mesmo balaio de Oruam poderia inviabilizar a produção de eventos como slams, batalhas de rima e até mesmo o Festival Corpo e Som, promovido pela Prefeitura Municipal, que eventualmente em suas apresentações musicais e literárias, podem incluir referências ao consumo de drogas e ao uso de armas dentro de um contexto de narração de realidade na vida periférica e da luta antirracista.
Resta o questionamento: tais projetos de lei, que prontamente ignoram o consumo de drogas lícitas como álcool e cigarro em músicas de sertanejo universitário, rock and roll e até mesmo pop, não estariam sendo utilizados como um recurso de eugenismo musical? Mais do que isso, não estariam abrindo brechas para iniciativas de censura cultural e para a criminalização de estilos musicais negros como o funk e o trap?
Caio Machado é bacharel em Jornalismo pela Universidade do Estado de Minas Gerais. Pós-graduado em Jornalismo Digital, além de editor-chefe do Jornal de Patos é produtor musical e artista independente.
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5 Comentários
Tentar tirar de cena Oruam ou qualquer artista desses gêneros como parece ser a intenção velada de muita gente,é somente exercer a censura, prática tão condenável quanto a apologia ao crime
ResponderExcluirMateria foda! Concordo exatamente com tudo! De fato afeta aqueles que querem mostrar a realidade da vida periférica!
ResponderExcluirFaz sentido nenhum comparar Racionais com Oruam.
ResponderExcluirOruam faz música exaltando a facção dele.
Cara não fala nada em sentido figurado não, ele faz apologia ao crime.
O autor não comparou o Oruam com os Racionais, só disse que pelo fato das músicas de ambos falarem de drogas e armas, mesmo que em diferentes contextos, poderiam ser igualmente proibidas caso a lei seja aprovada.
ExcluirEugênia musical, excelente termo
ResponderExcluirObrigado por comentar!