Repouso

 Texto e fotografia por Juliana Canhestro


"Herdamos uma casa, para nela morar

Para olhar, de seus verdes terraços, o horizonte do mundo

Uma casa chamada futuro

Construída de esperança

Ou chamem-lhe antes, de vida" - Albano Martins

 

Sempre foi assim, meu talento de fazer as piores situações, seja a mais pura de uma boa lembrança, como quem recolhe um caco de vidro e o chama de cristal. E tudo sempre foi incerto, tão incerto quanto as manhãs frias de segunda-feira em São Paulo, quando a cidade parece querer se esconder de si mesma. Até que tudo seja apenas um generoso apreciar.

No caminhar com ela, o jardim cinza, onde tudo parece ser perecível, a sombra tornou-se verde. Era como se a natureza insistisse em renascer como ela. Andávamos lado a lado, sempre em silêncio. Mas não era um silêncio de quem não queria falar, era imposto. Ela não conseguia por causa dos espinhos em sua garganta.

Toda vez era assim. Caminhava triste e sonolenta ao meu lado. A respiração dela, quando escapava, parecia música. Soava como uma canção de Tim Bernardes, melancólica e lenta. Bonita demais para estar acontecendo ali, entre duas almas cansadas em Pinheiros. Era eu o mais machucado.

Sentávamos sempre naquele banco velho, desses que já ouviram todo tipo de confissão dos enfermos. Ela deitou a cabeça no meu colo e, naquele instante, tudo pareceu suspenso. Meus dedos, magros e febris, tocaram seus cabelos, que já não tinham o brilho laranja do pôr do sol, restou apenas o novelo de neve da juventude. Nos tornamos cúmplice daquela paisagem. Ela sempre foi a flor púrpura de sua própria guerra, fardada pelo branco daqueles que trazem o seu alívio. Restou-lhe apenas um leve beijo frio em minhas mãos, e a sensatez ainda enganada na esperança.

            Mas a doçura dela nada mais era a sua despedida.

            E hoje me encontrei na forma mais pura de expressar sobre você.

Voltamos ao repouso de sempre, ao silêncio de quem teme o amanhã. Ela, exausta de cavar fundo a própria alma todos os dias, em busca de um milagre que nunca vinha. Nossa caminhada sempre feita de máscaras e artifícios, uma dança entre o amor e a dor, uma tentativa de enganar o tempo.

E no limiar de cada noite, continuo delirando por ela. Por sua delicadeza, sua intensidade drástica, sua forma de existir como se estivesse por um fio — e ainda assim encantando o mundo. O tempo era a navalha em nossas mãos, afiada e impiedosa. Mas, ironicamente, ele também nos sustentava.

 Mas ela cansou.

A última imagem é o sorriso vago antes de adormecer. Está gravado em algum lugar sagrado dentro de mim. Talvez na alma, talvez numa canção que escrevi sobre o nosso beijo. Nada mais mudou desde então.

O quanto te acho bonita nas tardes cinzentas.

E para sempre haverá

O prevalecer da cura

Até o dia que eu lhe encontrar novamente.

 

Juliana Canhestro é advogada e encontra refúgio na poesia, na música e no teatro, sua maior paixão. E nesse enlace, se depara no caminho entre a razão e o sentimento, levando humanidade a cada gesto.


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3 Comentários


  1. Senti saudades de um ente querido ao ler o texto emocionante com nuances de fim de tarde. Parabéns!

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  2. Num beijo, a eternidade! Belo texto!

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