A Confissão da Vela

Por Thiago Arantes

Imagem: Wirestock/Envato Elements

Joelhos sobre a ripa de madeira dura, mãos unidas segurando um terço nos dez dedos entrelaçados que serviam como apoio para a testa oleosa de quem, há muito, ali permanecia. Ela orava defronte à esta testemunha e como é bela a fé vista mais de perto. A boca fazia ginásticas curtas de movimento, balbuciava sopros sem que um som nítido fosse emitido, quase um treino da palavra. Para quem rezava? 

O oratório, pequeno altar na igreja, abrigava, sobre mim, uma Nossa Senhora de olhos pretos e parados, pintados em tristeza. Estranho depoimento que se presta quando, tanto quanto a desconsolada senhora que rogava sua intercessão, parecia-me que a imagem da santa fora esculpida em barro amargo. Mas pelo que sei seu filho fui crucificado, o que, para uma mãe, é uma eterna marca de angústia. Talvez aí a razão de buscar, justamente nela, por conhecer as dores do mundo, o auxílio pretendido: compreendiam uma a outra nos olhares que trocavam, é o que eu supunha. 

Ao meu lado tantas irmãs que partiram no mesmo destino que me aguardava. Pequenos montes de cera talhados em sacrifício, todos disformes, mas belos, porque em nossa imolação, também choramos. Quando a vela é acesa logo inicia seu carma, e, no pé da chama, formam-se pequenos lagos de lágrimas que escorrem pelo nosso corpo branco. Lacrimosas somos, consagradas pela fé de quem nos elege entre as várias da pequena caixa que nos abriga. 

Enquanto vela, sepultada no papel duro em que fui colocada, aguardava o fim para que fui criada. Os dedos da senhora que conheci há pouco não pareceu fazer escolha: fui puxada sem qualquer mensura. Tantas no pequeno invólucro e aquela mão enrugada pegou-me de forma suave, sem denotar a comoção que seus olhos transmitiam. Eu sei porque os vi quando abriu o fecho da caixa e vendo a intenção materializada naquela expressão lavada em lágrimas, desejei que fosse eu a escolhida. E fui, mas sem a atenção de uma triagem, uma eleição entre tantas outras postas ao meu lado. 

Enquanto vela, sei que este é um vivo erro. Explico-me: criadas em série, de igual tamanho e formato, não são todas as que desejam ser veículos da crença de desconhecidas pessoas. Temem, de forma ignorante, que se acabem, sem saberem que para uma vida bem vivida, velas e homens, à tem apenas quando se doam para alguém. Por isso digo, sem vaidade, acreditem, que o acaso dos dedos ao tocar meu corpo frágil foi feliz movimento porque eu estava alinhada ao meu fado pequenino e foi bom sentir o calor e a luz sobre minha cabeça, uma cabeça santa, por breve momento.

Às vezes me pego a pensar nisso: nas horas mais escuras da existência, as pessoas buscam a Luz de uma consolação. Querem aquecer e iluminar seu desespero ou elevar uma oração de gratidão e o calor da chama é o que faz subir as preces para o Alto, este segredo que aqui revelo enquanto me desfaço em lágrimas quentes que, aos meus pés, construirão outra obra da fé. Somos importantes para Deus, para quem ora e para quem é dirigida a prece feita. A vida de alguns minutos nos basta em intensidade, mas, oh, Deus, que deu inteligência aos homens para pensar e projetar as velas, porque de vida tão breve?! 

Ela chora como eu choro, mas não posso me emocionar a ponto de me extinga mais depressa, senão serei eu a pecadora do meu destino. Mas, difícil se conter quando, sempre há comoção ao se acender uma vela. Então me coloco no meu lugar de testemunha ocular e de ponte entre Deus e a reza.  

Ela mexe os joelhos, levantando-os devagar, cada um de uma vez. Estão vermelhos, arranhados e doloridos por certo. Veja só, sua carne também é oferenda, eu e ela, vítimas da fé. Quisesse o Criador, que dizem ser sábio e puro amor, que nos concedesse alguma forma mais feliz de Lhe falar. Porque, entre velas queimadas em seus degraus, pelas escadarias da vida vemos o pagar das promessas no sofrimento do corpo mais que a alma. Estranha barganha, quando o penitente é o que se curva, não o que se aflige. Então me soa estranho esse amor pela dor dos seus filhos. Mas como Vela, não me cabe a filosofia e devo voltar destes devaneios para cumprir minha sina.

Vejo-a se levantar enfim, caminha até perto mim, que sou agora somente um pedaço pequenino do que fui, mas seu destino final é a imagem.  Ela toca os pés da santa de cerâmica como se tocasse os pés da Mulher que viveu um dia nessa terra. Seu choro agora é um rio caudaloso e nem se preocupa com o som reverberando na acústica potente da igreja. Acho até que outros santos a ouviram e talvez também se comovam, como comovido ficou o senhor da limpeza que, como eu, a observava, parando sua vassoura e levando sua mão direita ao peito em evidente empatia. 

Ela olha então para mim que estou quase encontrando o meu fim. Tomba levemente a cabeça para direita já com a boca muda, esboçando um sorriso com os lábios fechados. Ela conta comigo! Tivesse eu com um coração teria agora palpitado, porque quase sempre os crentes são indiferentes com este instrumento servil. Queria eu dizer-lhe que fiel, como ela, sou eu com meus propósitos, que sua oração há de subir, como se deve, onde quer que Deus esteja a olhar as criaturas e que sentia muito pelo que eu não sei, já que, naquele breve instante de minha vida, não relatou a angústia sentida, calada pela ferida. 

Eu me findo, desmanchada, refeita em arquitetura de lágrima. Sou mais bela agora, acredito. A oração é meu cinzel. Há um sol em minha cabeça que me sacraliza antes que eu desapareça. Eis a confissão desta testemunha fiel de que, entre a terra e o céu, alguma luz há de haver para transcender os homens. É o último sopro de uma vela, que nunca é em vão: acendemos para ascender, a morte como redenção. 


Autor de A Terceira Margem da Folha e Lágrimas Latinas. Thiago Arantes é um poeta fajutinho, contista e compositor de rocks rurais.

🦆

Apoie o jornalismo independente colaborando com doações mensais de a partir de R$5 no nosso financiamento coletivo do Catarse: http://catarse.me/jornaldepatos. Considere também doar qualquer quantia pelo PIX com a chave jornaldepatoscontato@gmail.com.

Postar um comentário

1 Comentários

Obrigado por comentar!