Procura

Por Neto Moreira


Tudo que ilumina, nem sempre brilha. Santiago vestia seu pijama-esperança nas andanças noturnas com sua pequena lanterna. Mas o pó da terra do quintal parecia não abençoar a sina recebida em maldição. A desolação de quem procura, no escuro, seu futuro, feito gente que ainda não é. Feito barro esperando modelo, procurar-se, procurar-se, procurar-se...

Santiago, ainda menino, quando os sonhos do mundo eram todos possíveis, listou em tinta e papel, todos os seus pretensos Eus. Sete Meninos e sete destinos, qualquer deles, santos como a luz do dia. Essas escolhas de criança, paridos na bonança da alma, limpa e longe das convenções humanas, que vivem a dizer o que é digno, sério, seguro e rentável.

Como toda alma diligente e precavida, como ali residia a herança de seu futuro, pensou como fazem mais os mais astutos, “Ninguém há de tirar Eu de mim”. Dobrou o papel-alma sete vezes, beijou-lhe como quem beija deuses, colocou-lhe como quem coloca um filho pra dormir no berço dentro de adereço de sacola e caixa de papel e enterrou seu tesouro em lugar que só ele podia encontrar.

E as pedras do caminho, que chegam a todos de forma diferente, e às vezes fazem gente, às vezes descrentes de vitória, caíram sobre sua cabeça em estória doída, contada em uma linha: queda no cimento das ruas, cabeça contra o piso, e, mais que o sangue, a memória escorria pelo chão. Eis aí a maldição que havia de quebrar...

E o milagre divino, que não se mostra claro como tal, e que exige contraprestação, legou a ele, ao menos, a lembrança da lista enterrada n’algum sítio sob o chão do esquecimento.

Por isso a sina da lanterna que ilumina, mas não brilha seus olhos. Porque, de buraco em buraco, a caixa de papel que continha seu céu particular, não era revelada, não lhe acariciava os olhos do espírito. E quem quer viver sem sua alma? Ele, com nome de santo, perdido no limbo do esquecimento, não Se amanhecia nunca. “Óh, Deus, tenha piedade de quem procura por seus destinos de menino”, rezava enquanto molhava o pijama de suor. Ele, homem já de pêlos, vivendo hoje para procurar o ontem que era seu amanhã, e estava ficando tarde...

Uma noite, sua mãe aportou-se como náufrago na porta, ela que nunca fazia sala para a madrugada, viu o filho no quintal a fazer e cobrir buracos. Esperou que a percebesse, porque não queria assustá-lo, embora tivesse vestida de espanto e curiosidade.

- O que fazes aqui, Santiago? O menino perdeu também o juízo da lamparina da razão no dia em que caiu?

- Não, Mãe, ao contrário, fez-me são. Porque só a mente sã procura o amanhã que cabe a cada um. Se o entendimento não encontrou parada, a melodia de súplica e verdade pariu mais algum diálogo.

- Mas é tarde, filho.

- Sim, Mãe, é tarde. O tempo não é amigo dos que não sabem seu destino e esse quintal é um enorme deserto.

- Venha aqui perto.

E ela pediu a ele que contasse essa lenda pessoal que buscava. E como somente as mulheres que levam em si o divino feminino, que é sobretudo Mãe, emprestou seus ouvidos ao tempo e à boca de seu filho, por mais que o entendimento fosse coisa rara naquele momento. Ouviu um canto triste, ao que parecia, mas revestido de esperança, ainda que tardia.

- Não posso dar caminho à minha vida, Mãe, porque meus pés tem raízes profundas na areia da dúvida.

Escutou ali não o filho, mas o espírito que habitava aquele modelo de carne. Silenciou por um tempo, como quem procura a ajuda dos céus, porque as mães sempre recebem uma colher a mais do Amor Divino para cumprir a vigília eterna por seus filhos e, se não tem resposta, ao menos, e, para sempre, abrigo. Mas como palavras que moram no vento, disse quase sem perceber, salvando em glória a estória que agora chega em contento:

- “Filho, tem que cavar do lado de dentro”.



Neto Moreira é um poeta fajutinho, contista e compositor de rocks rurais.

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