(In)fidelidade Conjugal

Por Jô Drumond*


Certo dia, assisti a uma emissão televisiva sobre usos e costumes de algumas tribos indígenas brasileiras. Uma delas, cujo nome me escapa, despertou minha atenção. A tribo é composta por uma grande família, sem o tradicional núcleo familiar composto por pai, mãe e filho. Não há relacionamento conjugal. Ninguém é de ninguém. Todos são livres para fazer amor com quem lhes aprouver. Destarte, as mães nunca sabem quais são os pais de seus filhos. Todos os homens da tribo se consideram pais de todas as crianças e as tratam como tais. Nesse tipo de comunidade os mais idosos tratam com respeito e carinho os mais jovens, possivelmente seus filhos ou netos de sangue. Por outro lado, os jovens respeitam os mais velhos como se fossem seus pais ou avós. A aldeia é de todos, assim como os frutos oriundos da terra. Não há disputa por propriedades, nem pelo objeto do desejo. Tudo isso engendra uma vida simples e harmoniosa, sem rivalidades e, provavelmente, sem animosidades.

Isso nos remete, evidentemente, à antiga instituição do casamento, cujos objetivos iniciais eram a sucessão de propriedade e a proteção da linhagem de sangue.

A união entre homem e mulher, reconhecida pela sociedade, sempre existiu, mas ao longo dos séculos ela foi tomando diferentes formas, segundo a evolução sociocultural no tempo e no espaço. Ao longo da história, o casamento funcionou como eixo da estabilidade social. O amor entre os cônjuges não era levado em conta. A união conjugal era celebrada em detrimento da vontade da noiva e de seu consentimento. Durante a Idade Média, a importância do amor no casamento era quase nula. A mulher era negociada pelos pais com o objetivo de fazer alianças políticas ou de aumentar o latifúndio. Seu dever era a procriação de herdeiros, as lides domésticas e o bem-estar do marido.

Houve época em que, para garantir a sucessão de latifúndios somente a filhos legítimos, os homens chegavam a colocar cinto de castidade nas esposas, quando partiam em viagem. Prova da importância do fator econômico no casamento foi o celibato clerical, que se tornou obrigatório a partir de 1537 para evitar disputas dos bens da Igreja por parte de herdeiros dos padres.

Sabe-se que o casamento foi instituído pela Igreja Católica como sacramento a partir do Concílio de Florença, em 1439, no papado de Eugênio IV. A partir de então o casamento tornou-se indissolúvel, para evitar a manipulação de interesses econômicos. A infidelidade tornou-se pecado. Concubinato e poligamia foram proscritos. O casamento consanguíneo de parentes até o sétimo grau foi proibido. A relação sexual dentro do casamento, a única permitida pela Igreja, não podia visar ao prazer; apenas à procriação. O gozo entre marido e mulher enfraqueceria o amor a Deus. Tornou-se tão pecaminoso quanto o adultério. Para garantir o sexo sem pecado dentro do casamento, foi difundida a crendice de que o gozo amoroso poderia gerar crianças com doenças e enfraquecer a descendência.

Com a revolução industrial e o capitalismo, no século XVIII, floresceu o “casamento por amor” que portava em seu bojo a liberdade de escolha, o afeto mútuo e o prazer sexual. Começou então a libertação da mulher. Ela deixou de ser propriedade privada, na medida em que foi aceita no mercado de trabalho. No século XX, a profissionalização da mulher, os métodos anticoncepcionais e a liberação do divórcio afastaram a influência familiar e religiosa do relacionamento amoroso, dando-lhe uma conotação sexual.

Um aspecto negativo, que vem de longa data, é que o pacto de fidelidade mútua dentro do casamento acaba gerando sentimento de posse nos cônjuges. Nos dias de hoje veem-se crimes hediondos cometidos em nome da honra, provocados por ciúmes de um deles. O crime é cometido muito mais frequentemente pelo cônjuge varão, que se considera proprietário do corpo da esposa. Muitas vezes ele não aceita a ideia de que ela possa se relacionar com outro homem, mesmo estando oficialmente separada, e comete o feminicídio, termo muito em voga atualmente, ou uxoricídio (assassinato da própria da esposa), termo menos usual.

Considerando os parâmetros atuais de nossa sociedade, é impossível voltar aos moldes de uma sociedade tribal, primitiva e simplista, porém funcional.

Não se pode comparar a complexidade da “aldeia global” da era virtual com a aldeia indígena. Convenhamos que são realidades totalmente distintas, cada uma com suas especificidades. Se o pacto nupcial de fidelidade fosse eliminado da aldeia global, possivelmente esse tipo de crime deixaria de existir. Outro aspecto positivo seria a diminuição do índice de violência se todos respeitassem o próximo como se fosse um familiar (avô, pai, tio, irmão, primo...). caso não houvesse propriedade privada, como na aldeia indígena, possivelmente haveria mais harmonia.

Existe modelo ideal de sociedade? O que estaria certo? O que estaria errado? Em cada cultura, as arestas sociais vão se moldando diferentemente no tempo e no espaço. O importante é haver concordia discors, ou seja, equilíbrio e harmonia entre os elementos dissonantes ou heterogêneos.

* Redigido em 1º de fevereiro de 2021


Jô Drumond é escritora e tradutora e já publicou 17 livros. Colabora com o portal Acontecendo Agora, com a Folha Patense e publica com frequência no próprio blog.

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