Delírio

Por Elza Maia

Sabe, era engraçado muitas vezes. Como a poesia surgia em momentos curiosos. Naquela noite, tão comum, se pôs a sonhar como se estivesse à deriva do mundo. Sonhava que estava no campo de papoulas do Mágico de Oz, com seu vestido azul, deitada entre as flores. O vento circundava seu corpo e brincava com seus cabelos como se fossem folhas pairando levemente no ar. Seus dedos afundavam por entre o mato e repuxava a terra fofa, úmida, sentia a textura escapar por entre os vãos dos dedos e o cheiro de chuva perfumar a atmosfera fantasiosa. Sorria, com seus lábios franzinos, serena pela paz e completude que a inflavam ao respirar. Mas era um sonho que foi interrompido abruptamente ao despertar.

O coração se acelerava e seu rosto tomava um espanto, indignação por se obrigar a deixar aquele mundo. "Não!" pensou "De novo não". Mas já era tarde e sem tempo, seus olhos abriam como um lacre de carta se rompendo. O suspirou escapou pela boca no susto de acordar, permaneceu imóvel e tentou se lembrar brevemente de qual era aquele lugar em que estava. Olhou parada para o teto. Esqueceu-se de como voltar, mas aquela sensação estranha ocupava um espaço em seu peito. E era tarde, tarde da noite e era sem tempo, todo o tempo que parecia sempre se esvair ao relento.

Era todo o dia, a rotina incessante e incrivelmente maçante que lhe dizia o que fazer.

Aos poucos surgia uma pressão no peito que começou singela, no entanto, passava a ocupar todos os cantos que havia entre seus órgãos vitais.

Aos poucos o encanto era desfeito, via o mundo dimórfico, sem cor e sem graça.

Os defeitos saltavam aos olhos e era cada vez mais difícil se surpreender no enfadonho círculo que seguia.

Mas é engraçado como se acha a poesia de repente, assim, no meio do dia.

No meio da tarde em que se olhou no espelho, era descabida e não se servia nas camadas de pele que vestia. Seus olhos se perderam no próprio reflexo, entraram em outro mundo que alcançava ao sonhar. Era como se estivesse ao mar, denso, sem por onde fluir e escorregar, tentando não afundar na própria loucura, tentando velejar com velas escuras a iluminar o céu. "Meu Deus" pensou. Era um véu que separava a realidade da melodia da fantasia. E insistia, como insistia em encontrar o balanço da alma e do corpo. "Talvez não haja a resposta enfim, talvez não haja porque se separar".

Apenas sentia. O peso de dois mundos. Era a eterna dicotomia.

Seu delírio recobria gentilmente a pele em tinta, seu corpo era a moldura da alma que se pintava pelos olhos castanhos. E assim se desaguava, sobre as gotas do chuveiro, em aquarelas que desciam pelo torso e traziam novamente a finita infinidade em seu rosto. Ali percebia-se sã, ali se salvava do preto e branco e mudo e o presente, tão escorregadio, deixava de ser ausente no palco da guerrilha da vida. “Era bom” pensava. Era bom voar. E dentre todas as coisas, sabia, que a arte que emanava naturalmente de seu inconsciente, era capaz de salvar. E ainda proteger em um relicário, nos dias tão ordinários, o prazer de amar.


Elza Maia é uma amante da escrita e aprecia colocar no papel os sentimentos da vida cotidiana. Futura psicóloga, pretende mesclar as duas paixões em uma.

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