Por Gustavo Rubim
“Quanto mais gosto da humanidade em geral, menos aprecio as pessoas em particular, como indivíduos”. (Fiódor Dostoiévski)
Imagem: “Bohemian (Miguel Utrillo)”, 1890 — Santiago Rusiñol |
NOTA BENE. Meu estimado amigo, faz um calor insuportável, suo entre os dedos das mãos cadavéricas, já que distintamente dos gordos, não tenho o prazer de suar em lugares mais comuns, como entre as dobras do pescoço ou da barriga volumosa, seria algo mais interessante; que diabos suar entre os dedos das mãos… Enfim, pouco importa o suor salgado que sai pelos poros e escorre pela tez macia, se o que nos mantém vivos é o sangue quente que percorre os vasos sanguíneos do corpo frágil; bombeado, quase sempre, por um coração lastimado e empobrecido de humanidade.
O que realmente tenho preso à garganta, por um nó de costureira, e que preciso vomitar-lhe logo de uma vez é a respeito de um conto que li outro dia, numa noite não tão calorosa quanto esta, mas igualmente silenciosa e lúgubre, onde era possível ouvir até mesmo o arrastar de uma folha seca, caída de um galho de alfeneiro, pelo asfalto deserto da madrugada. Eu estava, como de costume, debruçado sobre uma edição antiga de contos do Kafka, que fica ali, despretensiosamente, em um canto da escrivaninha, ao alcance das mãos; essas mesmas que suam… A luz amarelada do abajur, que dá mais a sensação do amarelo dos postes de mercúrio, auxiliava-me na leitura difícil, repousada sobre a página aberta; que meus olhos, sobrepostos por lentes grossas e asseadas, consumiam, linha a linha, desejosos de que aquilo não tivesse fim.
A breve narrativa trata de um “fratricídio”; sim, sim, dirá consigo mesmo que não existe na literatura e na história dos homens tema mais clichê. Pensas logo em Abel e Caim, no entanto, afirmo-lhe, meu caro, que não é apenas em Gênesis que a desgraça é encenada de forma sublime, Kafka não fica sequer um passo atrás… Schmar é o assassino do conto, ele espera paciente, armado com uma baioneta, espécie de espingarda com uma faca amarrada à ponta. A sua vítima, Wese, que, todavia, é esperado em casa pela Sra. Wese, a esposa. Schmar está numa esquina escura, na qual Wese, fatalmente, necessita cruzar para chegar à casa. Poderia ser o cruzamento da rua C**. G**. com a rua M**, ou qualquer outro entroncamento nesta cidadela. No entanto, Wese tardou muito a sair do trabalho naquele dia, algo que não costumava acontecer. Wese era um daqueles homens pontuais que não tarda nem para ir nem para chegar. Agora, pensa em suas entranhas, <<Se livrou pelo atraso o maldito; eis o Destino!>>. O assassino se desespera e desiste de matá-lo, fosse assim, não seria Kafka, meu caro! Schmar aguardaria quanto fosse preciso, tal a necessidade de matar, e ainda gastou o tempo amolando nas ruas de pedra a ponta da baioneta. Assim que viu aproximar a vítima, cavou-lhe a ponta da lança até ver escorrer o sangue irmão.
Deve perguntar-se, no vão da cachola, por que conto este conto, que há de extraordinário nesta resenha tão banal, cotidiana, semelhante a essas que escrevo diariamente para o jornal? Nada, absolutamente nada, já que escondi o melhor para o final, o ponto crível da narrativa; os olhos fuzilantes de um sujeito chamado Pallas, confortavelmente agasalhado dentro de um roupão felpudo atado à cintura, que acompanhou toda a cena no parapeito da janela, num andar de cima com visão privilegiada para a esquina. Ele contemplou toda resenha que acabo de contar-lhe, não sem inclinar-se um pouco para frente na sacada, para apreciar melhor o ato; imóvel e alheio a tudo aquilo.
Não te assustas, meu caro, não notaste as similitudes, não vês a verdade escancarada em tua face? Somos nós os Pallas da sociedade, somos nós que apertamos bem os olhos para ver a desgraça alheia, o sangue derramado nos asfaltos dos bairros distantes, somos nós que nos inclinamos nesta sacada para contemplar a morte de nossos irmãos. Ao redigir estes males, preso numa cadeira confortável, na Redação de um edifício baixo, deserto, finco também a baioneta nestes pobres concidadãos; somos nós da mesma espécie de fratricidas. Veja só, não é o calor que me faz suar entre os dedos, é o sangue de meus irmãos que umedece minhas mãos frias e trêmulas. Sei que não sirvo para literatura; no entanto, são estas laudas mal redigidas – que insistem numa crítica fadada ao Direito e a sociedade, e, acima de tudo, ao animal jornalístico –, mais valorosas que qualquer linha que escrevo sobre nossa desgraça cotidiana. Arre! Ora vamos tomar uma dose de café com açúcar, precisamos esfriar o calor de algum modo e deixemos as asneiras de lado!
FIM
Gustavo Rubim desde 1999, jornalista.
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1 Comentários
gosto dos títulos. às vezes leio as matéria por causa deles, por mais bizarras que pareçam, como esse, que li como se fosse: "Suor entre dedos ou O Filicídio". Mas o título do interessante relato era: "Suor entre dedos ou O Fratricídio." O preconceito, ou prejuicio, em espanhol, é o que me fez imaginar, pelo título, suor entre os dedos e o assassino de filhos que não virão, porque o pai naquela atividade mataria os futuros filho, pois para mim se tratava de alguém em seu solitário e saboroso ato de descascar uma banana ou batendo uma punheta, ou se preferirem se masturbando. Mas passada a minha pressa percebi que era um comentário de uma narrativa de Franz Kafka, "Um Fratricídio", que conferi aqui e se encontra no opúsculo, "Um médico rural : pequenas narrativas", e não é a melhor da coletânea. Prefiro, "Um relatório para uma academia", que em outra coletânea, "Contos, fábulas e aforismos", foi traduzido como, "Comunicação a uma academia." E quanto, aos animais como Pallas, sempre seremos sonolentos e vis espectadores de nossas tragédias e dos outros. E só. Ademais não me recordo de Kafka como um onanista mas como um sadomasoquista onde o sexo nunca foi seu escopo, mas todo o resto do corpo e da alma, sua e a dos outros e outras, ainda que fossem dos insetos.
ResponderExcluirObrigado por comentar!