O Reinaldo

Texto e imagem por Gustavo Oliveira

NOTÍCIA-VIDA DO MUNÍCIPE DOS MUNÍCIPES

– para ser lida à boca pequena em tempos dominados pela obscena devoção à agro urbe

Tudo o que existia para esse homem era Patos de Minas. Não sabia louvar nada além de Patos de Minas. Nunca consegui compreender ao certo se esse orgulho provinha da alegria por achar-se membro da pretensa sociedade patense ou dalguma outra seita municipal secreta que inventara sozinho: de garantia só os fatos, as atitudes. Caso a essência se prove nos gestos, ei-los dispostos nesta breve “notícia” daquele sujeito.

Ele, por exemplo, se escutasse numa rodinha qualquer as palavras na ordem “Patos — de — Minas”, sorrateiro, se esgueirava para fruí-las de perto. Os olhos dele ficavam como que embaciados, não de lágrimas, mas da atenção em estado vítreo — semelhante à daquelas pessoas que atendem com fervor de insano aos cânticos de adoração e a outras manifestações sacras. Parecia não compreender nada do que diziam ao redor, e, autômato, repetia de si para si junto com o ouvido: Patos de Minas.

Esse hábito era elevado à convulsão quando sentia as atenções do mundo estrangeiro pousadas sobre a terrinha: poderiam falar de uma goleada acachapante sofrida pelo time da cidade, de um estuprador em série, de uma chacina de estudantes universitários, de um assalto cinematográfico no Centro, de mais uma mulher submetida a trabalho escravo sob um teto do metro quadrado mais caro da cidade: ele sempre tinha o mesmo olhar esculpido para essas ocasiões e o mesmo tom na repetição mecânica do mantra que o ligava ao plano terreno: Patos de Minas.

Claro que ao exercer a democracia fazia questão de votar certo — prova de que além de patriota era um homem de seu tempo: dedicava o direito pessoal e intransferível só aos mais votados da Câmara e da Prefeitura. Era um radar mais afinado do que qualquer pesquisinha mequetrefe de intenção de voto: um reflexo perfeito do interesse dos endinheirados que estivessem na vanguarda do tempo. Deve-se isso ao fato dele ter iniciado carreira como garoto de encomendas e atingido seu ápice profissional como vendedor. Do balcão que a muitos seria ócio, ele fez o milagre: tratava bem a todos (ainda que o maltratassem), sempre com a fachada expondo o melhor da hospitalidade, cortesia e benevolência inexistentes no povo patense — que ninguém além dele louvou com tanto ardor.

Minas Gerais e Brasil não lhe significavam mais do que nomes inócuos ocultando a abjeta corrupção dos piores tipos da raça, ou seja, significavam menos que nada. Também, né, pudera: nunca saiu mais de duzentos quilômetros do raio de Patos de Minas. Certo que reconhecia o defeito congênito de não ter sido nem concebido, nem gerado e nem parido em “tão augusta terra” (vinha da Jaguara, uma currutela em fronteira imediata com Patos de Minas), mas mesmo assim não aceitava o epíteto vulgar de patureba: “isso é nome pra quem vem com gana de ir, até em reencarnação sou daqui!”, vituperava e cuspia de lado em resposta. Reconhecia-se um cidadão patense da gema legítimo e digno de tal naturalidade como qualquer outro, ainda que nunca tenha sido sequer cogitado para receber algum título honorífico que consagrasse suas patriotadas.

Quando do aniversário da cidade, é claro que não faltava à “festa” — mesmo se estivesse em estado cancerígeno terminal. Ia e não gastava olho com os desfiles da patota de reles mortais, ficava era encarando a tribuna onde se posta a aristocracia transitória: os políticos. Por alguma rua torta da cabeça, chegou à conclusão de que aqueles e aquelas, mais do que quaisquer outros significavam Patos de Minas, estas três palavras que, aliás, as balbuciava incessantemente, enquanto contemplava a nobreza, ali, intocável…

Assim que chegava em casa, como bom beatão e órfão sem mais ninguém no mundo que era, repassava em voz alta, sozinho, tudo o que vira e ouvira: a benemerência suprema na liderança arrojada do prefeito, o tanto que emagreceu o vice-prefeito, o nome completo daquela nova secretária da educação, a toalete da primeira-dama, os patriarcas das famílias endinheiradas ali presentes, as “suas graças” das autoridades lidas no microfone, a elegância das vestes outonais parisienses e tudo o mais que não saísse do alcance da tribuna até a última cadeira de honor.

Era fiel, óbvio, ao jornal impresso da cidade. Como se não bastasse assinar o periódico, colecionava uma muntueira de papel velho que tinha como tema, retrato e origem aquele motivo de orgulho. Ouvia as rádios também, mas só o que fosse ao vivo. Detestava música “de fora” — as europeias, as americanas, as cariocas, as carmenses, as lagoenses e as outras mais de Minas que não fossem dos Patos. Detestava também as vozes estrangeiras: as de belo-horizontinos eram-lhe particularmente insuportáveis. Adorava de paixão todos os radialistas patenses e o povo que mandava recado. Quando parava para ouvir, parecia encantado. As íris pretas se transformavam em duas joias polidas diante daqueles delirantes monólogos sem nexo — tradição imaterial do entretenimento midiático da cidade.

Se era assim com o rádio, tente só calcular que deleite não gozava essa figura ao ver Patos de Minas refletida em imagem e som na televisão! Além de responder polidamente aos “boa-noite” dos apresentadores e às perguntas retóricas dos comentadores indignados, discutia avidamente com os repórteres sobre as aventuras do dia na cidade mais fantástica de todas. Tinha sempre aquela mirada translúcida, esquecida da existência de pálpebras, preenchida por faíscas chispadas no ar rarefeito da lembrança: “estive semana passada nessa rua”, “eu conheço esse cara falando”, “é isso mesmo, Patos de Minas” (esta última saía quando alguém falava algo que considerasse mais certo do que correto e fundamental na importância de ser dito daquela maneira naquele momento).

*

Apesar do conhecimento de anos que tínhamos (fora colega de serviço de meu pai), depois daquele fatídico dia, nunca mais nos falamos. Salvo engano, foi mais pro início do ano passado, quando eu ainda trabalhava naquela agência de publicidade. Devia ser umas seis da tarde, eu voltava de lá revoltado, como era de praxe. Tinha passado o dia inteiro desenhando as porcarias ufanistas que todas as empresas sempre pedem no tempo do aniversário dos decretos de emancipação. Topamos na calçada do INSS. Interpelou-me com aquela costumeira simpatia parva de quem tudo daqui-adora-e-ama para falar dos rumos da criatividade patense, da pujança cultural emanando do povo e de toda aquela baboseira que pensava me interessar nos nossos fugazes encontros de calçada. Eu vinha controladamente possesso, não seria possível ser sociável. Ali bastou um par de frases dele pro sangue me ferver nas veias e, dado que vim ao mundo sem ímpetos para agressões físicas ou verbais, meu gênio compensa essas faltas com sarcasmo. Cortei a baboseira de pronto:

– Que maravilha de povo esse seu, hein?! Uma cambada de comedores de pamonha… Patos… Milho… o caralho! Um povo capaz de dar ao mundo só da melhor porcaria: a porcariada que eles são… um bando de espíritos de porco, gente mesquinha e inescrupulosa que só grita alto dentro daqui, dentro das cercas deste chiqueiro!… Grita não, guincha: que é o barulho de porco! Capital nacional do porco, é isso que aqui é. Chamam de ruas, mas eu só vejo baias de engorda, dum lado e do outro, a porcalhada toda: leitões, leitoônas e cachaços guinchando de pavor do abate inevitável enquanto se empanturram com a caganeira salpicada de grãos de milho escorrendo do esgoto do andar de cima!

Já ia balbuciando qualquer resposta quando encarei bem o susto retorcido de indignação nos olhos dele:

– E você que gosta tanto de notícia não viu? Até festa nacional do porco esses canibais já estão dando!

Ri desbragado com o efeito do dito e só dei pelo sujeito quando ia longe, atravessando a faixa de pedestre às carreiras, sem nem olhar pra trás. Terminaram assim nossas relações, e, depois disso, quando me via, embarcava na primeira distração que o desobrigasse do encontro. Vimo-nos um bocado durante os meses que correram após a ruptura. A última vez foi numa tarde de domingo. Eu matutava angústia pelos calçadões da Lagoa Grande (batizada assim por ser maior que a Lagoinha) quando aquele estranho fisgar, um puxão metafísico de reconhecimento, mandou minha cabeça se voltar pra baixo e lá estava ele, banhado pelas melancólicas lambidas do sol poente, com os sapatos servindo de assento, esvaziando a miúdos uma sacolinha cheia de pipocas enquanto admirava a gulodice das piabinhas pinicando a superfície da água imunda.

*

Tá bom, tá bom, já entendi, não precisa reclamar desse tanto porque eu também reconheço a necessidade de sentirem justificado o tempo gasto na leitura. Sobretudo nas dessa natureza — que pretendem resumir a biografia de uma vida –, paira uma avidez até legítima em sorver jorros de frases poderosas ensinadas pela experiência e forjadas pelo bom gosto. Mas não existe remédio pra superbactéria: o pobre (ou rico, depende do juízo de quem pense) tema desta peça não fez nada de mais, não mudou nada, não deu uma ideia, não lambeu (falta de oportunidade, nunca de desejo), nem foi lambido. Não teve velório e, mesmo se tivesse, Patos de Minas não compareceria em peso. E nem teve nota funerária lida no rádio pro ouvido das velhas gordas. Também se frustra redondo na casa do chapéu quem chegou até aqui esperando ver a bandeira municipal e galas e flâmulas serem — sequer nalgum longínquo momento póstumo — dedicadas a um tão nobre filho adotivo da terra.

Morreu há cerca de três meses. As fábricas empestam tanto o ar no bairro dele, que a catinga da putrefação acabou passando batida. Hoje completa uma semana que os vizinhos arrombaram a porta e descobriram os restos do corpo. Apesar das carcaças do cadáver nada indicarem da causa da morte, no postinho do bairro repousa em esquecimento um prontuário de pedido para tratamento de câncer no pulmão encimado pelo nome do nosso ilustre personagem.

Se brincar, enquanto esse pedido ainda mofa no arquivo da humilíssima instituição de doenças, os legistas do IML já até destruíram por engano a certidão de óbito despachada às pressas no fim do expediente de sexta passada como “morte natural insuspeita”: em parte por ninguém ter requerido o corpo; em parte porque seria eufemismo chamar aquilo de corpo, pois restara apenas uma ossada com lascas de carne aqui e ali; em parte para pegar os portões do Santa Cruz ainda abertos, direto para o setor das valas comuns, na baixada dos indigentes, às margens do pútrido Paranaíba.

A causa mortis exata, mesmo que desconhecida à ciência, eu, o narrador, diligenciei literariamente até chegar ao pé da letra: embolia patriótica bilateral, induzida pela aspiração passiva e contínua do ar pestilento das cúpulas provincianas. Apesar de tudo fostes um homem bom, Reinaldo. Está dito.

Inverno de 2023


Gustavo Oliveira é um leitor em processo de alfabetização

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5 Comentários

  1. caramba, um dos melhores texto que já li !!!

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  2. Ainda assim continuo gostado de Patos de Minas. A respeito de um povo besta, que acha que manda na city

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  3. Gustavo Oliveira Cunha, um gênio escondido nos porões de Patos de Minas. Que a sua literatura exale tanto quanto o fedor desta cidade!

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  4. Escrita mediana. Grande potencial! Apenas um intelectual Patense frustrado, textos assim, já li de vários Patenses. Todos intelectuais medíocres.

    Um Patense feliz, é igual um intelectual medíocre Patense. Não entendeu a vida Patense. Mas no fim, o que todos tem em comum? Continuam a morar em Patos de Minas

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  5. Sou Patense, adoro Patos de Minas, mas não me ofendi com o texto, pelo contrário! Achei sagaz, muito bem escrito e cômico. As únicas pessoas que vão se doer são aquelas tão cegamente patriotas a ponto de não interpretar um texto e uma ironia sarcástica. Show!

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